Imagem tirada daqui.
Uma história interessante que li há alguns dias no jornal Die Zeit, e que também faz parte da lista seleta de assuntos que eu dificilmente teria acesso não fosse o querido e eficiente sistema de feeds do meu email, foi a das crianças trazidas da Namíbia para a Alemanha Socialista. Você conhecia esta história? Eu não.
Essas crianças viveram o drama de serem praticamente deportadas para a Alemanha, e de repente depois terem que voltar para a recém-independente e capitalista Namíbia, após a queda do Muro de Berlim.
Hoje aquelas crianças de então seguem caminhos totalmente diferentes.
É o caso de Paul Shilongo. Quando tinha apenas quatro anos, na Namíbia, o fizeram embarcar para uma “galaxy far, far away”: a República Democrática da Alemanha. Paul era uma das crianças namibianas que passariam a infância na Alemanha socialista. As crianças moravam em uma espécie de internato onde eram criadas como líderes em potencial para continuarem a chamada “elite socialista” na Namíbia. “Vocês vão construir a Namíbia de novo!”, é a frase que vem nos sonhos de Paul até hoje.
O esquema era quase militar. As crianças deviam desenvolver suas habilidades corporais, independência e acima de tudo serem educadas para o serviço militar. “Zucht und Ordnung”, disciplina e progresso eram as palavras chaves da criação. Na escola, quem tirasse um 9 era punido de alguma forma. Havia também a educação político-ideológica, a mais importante de todas.
O destino dessas crianças era trabalhar como médicos, burocratas, economistas, etc, no futuro Estado socialista da Namíbia, se tivesse havido um.
Em 1990, depois da reunificação das Alemanhas, as crianças namibianas precisaram retornar ao seu país de origem, porque não houve um programa cultural que as integrasse na nova realidade alemã. As “crianças” já eram adolescentes em seus cerca de 15 anos e voltariam a viver em uma cultura totalmente diferente, mas ainda a de sua terra natal. Algumas nem falavam mais sua língua materna. Só alemão, fluente e sem sotaque.
No momento da volta, o então recém-eleito novo presidente da Namíbia, Sam Nujoma, tratara as crianças como “heroínas da luta pela liberdade”. Na mídia ficaram conhecidas como “GDR (German Democratic Republic) kids”. Depois foram esquecidas.
Os pais de Paul e muitos outros morreram em conflitos nos anos 70 entre Angola e África do Sul. A Namíbia, que antes da independência chamava-se África do Sudoeste, fica entre os dois países, em posição estratégica). Em um desses ataques, em maio de 1978, o exército sulafricano bombardeou Angola e milhares de pessoas perderam a vida. A situação de calamidade fez com que a SWAPO (South-West Africa People’s Organisation, o movimento marxista de guerrilha contra a ocupação sulafricana do país) pedisse ajuda aos países do bloco comunista e a RDA respondeu que poderia cuidar em seus hospitais dos soldados e civis feridos no bombardeio.
Estava no pacote de ajuda também receber os filhos de refugiados vivos ou mortos no conflito. Até 1989 embarcaram 400 crianças namibianas neste esquema para a região de Mecklenburg, ao norte da Alemanha.
Paulo lembra de um homem chamado Abel Shafa Shuufeni, o encarregado de cuidar das crianças, e suas frases preferidas: “Vocês precisam dar o melhor de vocês na escola para serem os melhores! Vocês serão os futuros líderes da terra de vocês!”. Paul ri, afinal, hoje ele vive de limpar carros e ganha o equivalente a 1 Euro por dia.
Órfão, Paulo foi adotado por uma família de origem alemã quando retornou à Namíbia. Eles pretendiam continuar com a “educação alemã” que o menino tinha recebido, ou seja, sempre alerta para disciplina, limpeza e ordem. Aos 17 anos Paul começou a beber e seguir um caminho não muito exemplar para essa equação de valores germânicos. “Ele não era alemão, era apenas um negro que sabia alemão”, conta sua mãe adotiva hoje. Os dois não têm mais contato.
Apesar do sistema de internato em que vivia, Paul lembra da RDA com saudades e nostalgia que poucos alemães ainda conseguem lembrar. A terra onde foi pela única vez feliz.
Este texto foi publicado em 24.11.2010 no Blog do Noblat.